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somos uma extensão de nós próprios naquilo que fazemos profissionalmente.
assumir que um trabalho é só um trabalho, desmerecedor de demasiada importância, é meio caminho para a infelicidade, para a doença do domingo à noite, para a percepção de que a vida passa por nós sem lhe darmos o devido valor, presos em algo que nos dói por dentro.
creio que uma das coisas que mais me incomodou, na entrada para uma vida activa mais dura (que sempre trabalhei, mesmo a estudar, ainda que com os meus próprios horários) foi a sensação de prisão. a sensação de que me prendi voluntariamente, cheia de algemas até aos ossos, em troca de um salário que não compensava, nem num terço, a infelicidade que aquilo que me trazia. foi a ideia de que não era dona e senhora do meu tempo, que precisava de suplicar para fazer tarefas básicas acessíveis aos comuns dos mortais. o que mais me molestou, a pontos de bater com a porta,
que sa foda esta merda toda, prefiro ser cantoneira, por exemplo, mas apanhar ar fresco nas trombas,
foi a ideia de que a vida se desenrolava num cenário qualquer, que via através da janela mas que me estava privado porque tinha de permanecer dentro de quatro paredes, com prazos e um stress atroz, diariamente, incluindo aos fins de semana.
não estava preparada e, tenho a certeza, nunca estarei. o dinheiro faz parte da vida, quase que a comanda (não venham com merdas, bem sabemos que sim) mas a vender-me tem de ser por muito mais: tenho de retirar daquilo que faço um prazer que compense a sensação de prisão.
quando estive em cabo verde o guia que era de uma simplicidade atroz, ao apresentar-nos as belezas da ilha foi presenteado com mimosices dos meus colegas de excursão:
então e qual é o salário mínimo daqui? só? é conseguem viver disso?
a cidade é só isto? por que não pintam as casas?
não há agitação nocturna?
nunca sentem vontade de conhecer a vida numa grande cidade?
não fica triste por estar aqui preso?
assim, nas perguntas de quem não tem noção da merda do que diz, porque estando preso a maior parte do tempo se torna um selvagem ao ser posto em liberdade.
o homem sorriu sempre e respondeu com uma sensatez gritante, a servir-me de gorro tricotado à medida para a minha vida:
"vocês passam o ano inteiro a trabalhar poupando para uma semana de férias aqui. andam um dia de praia em praia, pagam a um hotel comida que já comem em casa e colocam fotos nas redes sociais. depois vão trabalhar mais um ano à espera das próximas férias. eu estou aqui o ano inteiro. e não preciso de férias porque as tenho, naquilo que faço, ao longo do ano".
assim, toma que já almoçaste, calando o pessoal e fazendo-me ter a certeza de que não assumo mais nenhum compromisso que me molde a uma personagem que não sou; fazendo-me ter a certeza de que um trabalho faz parte de mim e eu não sou só aos fins de semana.
tenho muito pena de quem doem os domingos pela segunda do dia a seguir. de quem necessariamente se sujeita a nove horas diárias de perda de vida porque delas não retira mais prazer que não seja pagar contas de coisas que apenas usufrui em um quatro da sua vida. de quem poupa um ano inteiro para passar as férias que aos outros são vida, e nelas anda de peito feito porque o dinheiro comprou hotéis de cinco estrelas que duram sete dias.
tenho mesmo pena. e mais depressa me vejo no meio da serra, a cavar batatas e fazer medeiros de palha, do que a sentir que a vida me foge por entre os dedos em troca do dinheiro que me permite ser feliz uma semana por ano.