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há poucas coisas que despreze mais do que a ideia de que os pais são mártires em função dos filhos.
o sentimento de alguns progenitores, tão generalizado ultimamente, que ouço e leio e vejo, numa espécie de moda contagiante e perigosa de:
* ah, as coisas que eu faço por eles!
* ah, como me mantenho neste trabalho horroroso porque tenho filhos!
* ah, que não me divorcio porque os meus filhos precisam de uma mãe/pai!
* ah, que não leio porque tenho todo o tempo todo ocupado com os filhos!
* ah, que não viajo porque tenho de canalizar todo o dinheiro para os meus filhos!
* ah, que apanho porrada no lombo mas não saio por causa dos meus filhos!
*ah!
este sentimento dominante de que o que eu faço está condicionado por um ou dois ou três ou uma equipa de futebol de filhos que pus no mundo é feio, sobretudo se passado para aqueles por quem se é, supostamente, mártir.
escrevo e sinto isto unicamente através da minha posição de filha. e sei, como toda a gente, que a maternidade e a paternidade exigem uma série de sacrifícios, uns maiores, outros menores. faz parte como faz parte todo o amor. sacrificamo-nos, numa ou outra questão, quando amamos. pomos de lado pouco ou muito ou quase tudo de nós - dependendo da forma que somos e vivemos e sentimos - em função do outro. repito, faz parte.
o que não faz parte é colocar nos ombros do outro o peso da nossa decisão de sacrifício. o peso do que amamos.
o que não faz parte é dar ao outro, num indício aqui, num indício ali - sobretudo daquele de quem se é progenitor - uma série de decisões cobardes que se assumiu como dominadoras da vida.
o que não faz parte é colocar na cabeça do outro que a sua existência provoca tanta coisa menos boa. mesmo que se jure a pés juntos que se ama. mesmo que se diga - sentindo - que se morria em função do outro: de que raio vale morrer pelo outro se todos os dias se vive uma existência miserável - a que o outro assiste - e que provoca dores de morte pela culpa que provoca?
em última instância a decisão de ser mãe/pai está em quem o decidiu fazer. é a lógica da batata mas a nossa vida é consequência das nossas escolhas, por mais pequenas que sejam, por mais banais que possam parecer. e se não pensamos nisso na maioria das vezes, comandados por um instinto de sobrevivência que nos impele a seguir sem questionar ou fazer um resumo de todos os e ses, é estupidamente repugnante quando, directa ou indirectamente, incutimos no outro que permanecemos, que ficamos, que sofremos porque amamos tanto.
é ridículo.
é obtuso.
a decisão de permanecer numa relação, de ficar num trabalho, de ter uma casa minúscula, de não viajar, de não ser feliz é sempre, em última, instância de quem decide e não do condicionante.
a decisão de permanecer numa relação abusiva é de quem escolheu aquela relação e tem medo ou pavor ou incapacidade de se mover, usando como escudo protector um ou dois filhos. e incutindo, mesmo sem querer, que a responsabilidade da sua infelicidade é do condicionante. e quando o condicionante voa e sai de casa e há mil oportunidades de sair também, permanece-se porque "é demasiado tarde, porque quando era possível sair havia filhos e não se podia!".
isto não é amar. ou pelo menos é um amor egoísta que provoca traumas inimagináveis naqueles que sendo os "condicionantes" precisam de lidar com uma culpa que não é deles.
há poucas coisas que mais despreze do que mártires por opção e que sendo mártires decidam colocar a responsabilidade do seu espírito de messias na existência do outro.
e é por isso - também - que tenho tanto medo de ser mãe.