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é como se a minha vida fosse despida daquilo que era. o que era não é e o que é não era. e, mesmo assim, luto numa espécie de combate sem árbitro nem ringue para tentar encontrar o que foi, numa rapidez estonteante.
respiro fundo, digo "são só mais uns minutos" e prossigo.
há que prosseguir para não perder tempo a analisar cada minuto, as horas dos dias tripartidas e eu sem controlar cada uma, as tarefas alinhadinhas na agenda, agora sem agenda, sem tarefas, sem alinhadinho.
respiro fundo.
sei que estou, neste momento, sob um enorme cansaço que me pesa nos olhos, no corpo, nos braços.
só mais uns minutos.
se for a parar e a pensar nos últimos dias, todos seguidos, bloqueio, como naquela noite na maternidade quando na quinta noite sem dormir comecei a deambular no corredor, o puto na colo, à procura de um canto onde um qualquer bebé não berrasse e eu pudesse dormir umas duas horas seguidas. e a enfermeira a levar-me para um quarto vazio e a acordar-me para dar de mamar de duas em duas horas, numa humanidade sem fim, a dar-me pancadinhas no ombro, como se me embalasse e percebesse o esgotamento.
o puto não chora.
ou melhor, chora, claro está, mas só quando lhe mudam a fralda ou o levam ao banho. no resto do tempo fica quieto, a dormir ou a comer, consoante a hora.
não chora de fome e é preciso acorda-lo para que coma. não chora de tédio. não chora porque acorda. e sinceramente, não sei como seria se fosse igual ao miúdo da cama do lado que berrava noite e dia, numa gritaria incessante a pontos de levar qualquer um à exaustão.
é verdade que o puto não chora por dá cá aquela palha mas, quando chora eu olho para ele e morro aos pedacinhos.
as hormonas consomem-me. só podem ser hormonas.
aquele grito entranha-se na alma e é como se me batessem com ele. sinto fisicamente uma dor aguda quando médicos e enfermeiros lhe tocam para o analisar, para fazer rastreios, teste do pezinho e afins. ele chora e é como se o meu mundo fosse uma redoma de lágrimas e só me apetece pegar nele e esconder-nos aos dois, muito longe disto, do meu cansaço, do meu descontrole interno (mas irrepreensível por fora) e de todos os pesadelos que agora me ensombram, numa espécie de castigo:
e se ele perder peso em demasia?
está amarelo?
e se alguém lhe transmite algum vírus?
a sério que os rastreios estão todos bons?
e se este leite não chega?
e se os pés não aquecem?
caí nos clichés todos.
ontem, enquanto fazia o jantar, enumerava-os pelos dedos das mãos, mentalmente.
não houve um filho da mãe de um cliché que não me fosse escarrapachado em cima:
as lágrimas incessantes no momento do parto; o contar dos dedos numa sofreguidão que só visto; o achar que não havia miúdo mais giro naquela maternidade; as fotografias que acabaram com toda a memória do telemóvel; o comprar uma data de tretas sem significado algum mas que podiam ser precisas; o pô-lo a dormir comigo - mesmo com a cama dele ao lado; o chorar desalmadamente porque ele chora; o rir-me que nem perdida quando solta um pum ou quando faz xixi mesmo na hora que mudamos a fralda e nos presenteia com repuxos de urina nas trombas; a sensação de que uma parte de mim foi-me cortada, mesmo que nunca me tivesse apercebido dela antes e possa, de um momento para o outro perdê-la.
caí nos clichés todos e não estou nadinha importada.
consome-me mais este cansaço, esta oscilação de humor. quero responder a toda a gente, comprar os presentes de natal de toda a gente, organizar a casa com método e precisão, responder a e-mails de trabalho em atraso, organizar refeições e as próximas tarefas. quero fazer tudo e concluo que consigo, basta só cortar mais uma hora de sono aqui, outra ali e esperar que estabilize e tudo isto volte ao normal para que eu possa ser eu, ainda que não sendo só eu, outra vez.
há mil coisas que queria escrever. estão aqui as palavras alinhadas, numa espécie de tsunami sem fim. queria partilhar como ele chegou, num momento para o outro, do acompanhamento incrível da minha médica, da consulta com a psicóloga horas antes do parto para me ajudar a não hiperventilar, da amizade que fiz com duas enfermeiras, da humanidade dos profissionais de saúde que me acompanharam. queria contar as peripécias que me fizeram rir às gargalhadas, das sensações das primeiras coisas, da doçura de alguns sorrisos.
queria contar não por vós mas não perder na penumbra da mente estes momentos. tenho medo que o cansaço se instale e sejam só trevas e escuridão quando consegui, vá-se lá saber como, levar tudo isto como uma tarde solarenga de outono, com folhas secas, maças assadas e dióspiros doces.
hei-de contar.
hei-de escrever.
agora vou só respirar fundo, garantir que são só mais uns minutos e prosseguir.
sou muito mais do que algum dia imaginei ser.
e não sei ainda como lidar com isso.